terça-feira, janeiro 23, 2007

Ética

A ética e o seu espaço são das dimensões humanas de maior complexidade, quanto se trata de a concretizar. A questão do aborto é a oportunidade para reflectir sobre um aspecto fulcral na existência da ética e na sua relação com a lei.
A maioria, a larga maioria das normas jurídicas, concretiza ou deve concretizar, no plano normativo, uma dimensão ética. Os conteúdos da lei são, devem ser, conteúdos também éticos. É assim, ou deve ser assim, com a esmagadora maioria das normas.
Esta coincidência alarga-se também às dimensões filosófica, religiosa e sociológica. Muitas vezes de forma comum em muitas realidades e sociedades. A norma "não matarás" é comum à ética, à lei dos homens nos Estados, à filosofia e às diferentes religiões.
Há também normas sem conteúdo ético. Muitas das normas procedimentais ou regras técnicas, não têm densidade ética. Também regras fundamentais da convivência humana, como as regras de trânsito, não têm dimensão de validade no plano ético (prioridade à esquerda ou à direita é éticamente indiferente).
Tenho por certas estas orientações da leitura do Prof. Baptista Machado e da sua "Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador".
Da mesma forma, as normas sobre o aborto, aceite-se ou não, concorde-se ou não, serão sempre éticamente divergentes. Defensáveis ou atacáveis, consoante o plano ético individual. No plano da mãe ou do feto. Ou em ambos. Qualquer que seja a abordagem, desde que feita com sensatez e inteligência, sem pré-conceitos filosóficos ou religiosos, acabamos estranhamente por atingir as mesmas divergências éticas.
Ora, é esta dimensão pessoal e de opção da consciência individual, é a necessidade desta avaliação e decisão individual, que legitimam, no limite, a legalidade da escolha livre da mãe para, em certas condições, poder interromper uma gravidez.
Não é perante o problema em abstracto, em regime de pré-definição, que se pode formular um juízo definitivo sobre a admissibilidade ética da decisão. É no plano concreto, daquela mulher, daquela situação de vida, daquela relação afectiva, daquela necessidade. É aí que o problema se põe e tem de ser resolvido. Não é no plano de especulação filosófica individual, nem no plano da elaboração e legitimação formal da norma jurídica. Nada disso.
Não poderia deixar de estar de acordo, assim, em permitir essa escolha à mulher. Livre, informada e com todas as condições criadas pela comunidade, para decidir por não interromper a gravidez. Mas isso só é válido se for uma escolha sua. E se for essa a sua escolha, que seja feita logo no início, que seja feita em condições de assistência médica e clínica e que o exercício da sua escolha seja absolutamente livre e esclarecido.
(Almada)